Você conhece alguém com muita dificuldade de dormir? Alguém que esteja trocando o dia pela noite ou indo dormir tão tarde que passa o dia inteiro cansado? Estou atendendo uma pessoa assim e gostaria de compartilhar nossa sessão desta semana. Vamos chamá-lo de Luke. Mas não espere um texto do tipo "5 dicas para dormir melhor". Não é disso que se trata. Às vezes é fácil "resolver" um sintoma, mas geralmente cria-se outros 3 ou apenas 1, mas muito pior e que só vai aparecer depois de meses ou anos.
Breve Histórico do Luke
Os dois fatos mais importantes para considerarmos neste texto de hoje são:
1- Luke sempre teve medo de dormir, desde criança. Os pais trabalhavam fora e deixavam ele sozinho em casa com uma ajudante. Luke foi cedo para creche. Ser deixado em casa e depois ser deixado na creche não são traumas graves, porém, de acordo com a teoria do apego de John Bowlby (não confundam com as versões modernas) a repetição da separação faz com que o a tristeza e o medo pontuais se transforme em insegurança. Se Luke tivesse a oportunidade de extravasar essa tristeza e esse medo ao longo do tempo, possivelmente a insegurança não se instalaria desta forma. Porém poucos pais sabem da importância do extravasamento e menos ainda sabem como fazer. Tendo feito isso com meus filhos desde que tinham 3 e 1 anos de idade, e tendo ensinado para centenas de pais, posso atestar para os benefícios que isso traz não só para a saúde mental das crianças, mas para a saúde emocional da família
2- Luke ganhou um celular com 12 anos e teve liberdade para usá-lo quase sem qualquer restrição. Isso fez com que seu uso médio ao longo dos anos chegasse a 8 horas por dia. Além da enorme quantidade de horas, a maioria delas era usada vendo pequenos videos de 30 a 60 segundos em aplicativos como TikTok, Youtube (shorts) e Instagram (reels). Vários estudos mostram uma alta correlação entre uso de redes sociais e distúrbios do sono. (este relatório apresenta várias fontes https://www.hhs.gov/sites/default/files/sg-youth-mental-health-social-media-advisory.pdf)
Ao longo de alguns meses de terapia já conseguimos alguns avanços como a desinstalação do aplicativo TikTok e a diminuição de trocas do dia pela noite. Porém, Luke continua indo dormir por volta das 3 horas da manhã (antes ele ia as 6 ou 7 da manhã), o que ainda atrapalha sua vida.
É importante ressaltar que, na minha concepção, dormir tarde ou trocar o dia pela noite não são coisas ruins ou erradas. Não ha um julgamento moral sobre esses comportamentos. Muitas pessoas tem ótimas vidas desta maneira e muitas obras importantes foram criadas nestes horários. Como canta Chico Buarque, "Eu faço samba e amor até mais tarde, e tenho muito sono de manhã".
Mas não é este o caso. Luke não está usando suas madrugadas de forma potencializadora.
Extravasando Emoções Passadas
Na medida em que vamos vivendo de maneira desconectada da nossa potência, os acontecimentos vão se acumulando como uma pilha de acontecidos em nossa vida. Eles vão sulcando caminhos afetivos em nossa superfície. Esses sulcos fazem com que vivamos uma vida padronizada, habitual, repetindo ações, pensamentos e sentimentos, mesmo quando já não fazem mais sentido.
É por isso que precisamos alisar esta superfície. E uma forma de fazer isso, é atualizando o passado no presente e transmutando esta experiência.
Quando Luke estava me contando sobre o horário de dormir na semana que passou, ele mesmo me ofereceu uma memória.
Luke: Lembro de ter 5 anos e ver minha mãe saindo de casa para trabalhar. Eu não queria que ela fosse. Quando ela fechava a porta eu corria para o sofá que ficava perto da janela para ainda poder vê-la. Ela entrava no carro e o carro saia até sumir da minha vista. Eu ficava muito triste.
Eu: Entre na cena com sua idade atual e apresente-se para o menino de 5 anos.
Luke: Ele não dá bola pra mim.
Eu: Diga que você sente muito que não havia ninguém para ficar com ele neste momento difícil e que agora você está ali para o que ele precisar.
Luke: Ele se sentou e começou a chorar.
Eu: Ouça o choro sem julgamento. Sem querer que ele pare de chorar. Essa é a capacidade natural da criança se auto-regular e impedir que esse acontecimento crie marcas profundas. Tenha confiança nesta capacidade. Fique disponível.
Luke: Ela me deu a mão e ficou chorando. Agora ela está se acalmando. Ela desceu do sofá e foi brincar no quarto.
Eu: Vá atrás dela. Diga que ela pode te chamar sempre que precisar e pergunte se você já pode ir embora.
Luke: Ela disse que sim
Eu: O que você está sentindo?
Luke: Primeiro eu senti muita tristeza mas agora, depois do choro eu me sinto aliviado.
Eu: Seria muito bom se você pudesse encontrar esta criança todos os dias por uma semana. Aproveita o horário que você escova os dentes (sugeri isso por ser um hábito diário), feche os olhos e encontre com ela.
Luke: Isso me dá ansiedade. Eu já penso que não vou conseguir.
Eu: Ótimo que você percebeu seu pensamento e sua sensação. Afirme isso: "estou ansioso"
Luke: Agora a ansiedade virou uma preguiça.
Eu: Afirme a preguiça;
Luke: Agora me veio um "tudo bem"
Stormtroopers
Olhei para a camiseta de Luke (agora vocês saberão por que escolhi esse nome) e vi a imagem daqueles soldados do Império de Guerra nas Estrelas, os Stormtroopers. Na hora imaginei o jovem Anakin (que depois se tornaria Darth Vader) dentro de um cofre escuro e frio, sentindo tristeza, medo e muita raiva depois que seus pais foram assassinados. Também imaginei os stormtroopers cercando este cofre e impedindo qualquer contato com aquela criança.
Falei para Luke que os Stormtroopers são a ansiedade, a preguiça, o esquecimento e a distração que acontecem com ele. Eles não são maus. Eles estão protegendo a criança que foi ferida e que não quer sentir dor novamente. Nem eles e nem a criança sabem que agora você cresceu e está ganhando capacidade de sentir tristeza, medo, raiva, dor e ao mesmo tempo se acolher. Essa é uma das capacidades de um verdadeiro adulto: sentir e se acolher simultaneamente.
Não adianta forçar a passagem pelos Stormtroopers. É preciso nomeá-los. Por isso eu pedi para ele afirmar a ansiedade e a preguiça. Quando reconhecemos essas partes em nós e agradecemos pelo trabalho que fazem, elas podem abrir um espaço para conversarmos com a criança. E uma vez lá dentro, é preciso oferecer uma presença tranquila, não julgadora e permitir que a criança sinta o medo, a tristeza, a raiva e a dor que estão acumulados. Aos poucos, fazendo isso ao longo de semanas e meses, vamos alisando essa superfície e permitindo que os acontecimentos encontrem novos caminhos afetivos.
Eu só consegui ver a cena do Anakin com os Stormtroopes e agora escrever este texto por causa do encontro com Luke. A esquizoanálise se trata deste encontro potencializador para analista e analisando. Ao encontrar minha potência neste encontro e criar algo novo, afeto o analisando de maneira que ele possa encontrar suas próprias forças e assim ele também me afeta.
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